Linguagem neutra no Brasil é um processo lento, diz especialistas em linguística

Especialistas apontam que a implementação de uma linguagem neutra é um processo lento, natural e que exige uma conjuntura social favorável

Foto: Felipe Carvalho
A linguagem neutra tenta tirar o idioma do binarismo



A linguagem neutra, ou também conhecida como  linguagem não-binária tem sido cada vez mais discutida entre as pessoas e dentro das academias no Brasil. Ela consiste em não determinar gênero masculino ou feminino para incluir pessoas que não se identificam como homens ou mulheres. O iG Queer conversou com especialistas em linguísticas para entender quais são as reais possibilidades de que ela seja implementada no Brasil.

Para o professor da Universidade de São Paulo e doutor em linguística Eduardo Calbucci, uma língua não funciona por uma legislação. Nestes termos, os governantes ou os linguísticos não têm direito de dizer o que deve ser usado ou não, então uma língua é usada naturalmente. “A implementação dela não depende da vontade das pessoas ou da determinação de um determinado sujeito, ela simplesmente acontece”, explica. 

Neste mesmo entendimento, Luiz Carlos Schwindt, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutor em linguística, aponta que isso não quer dizer que uma mudança não possa ser iniciada por um uso consciente ou político da linguagem: apenas significa que, independentemente da motivação, só prosperam mudanças que encontram uma conjuntura social e estrutural para se estabelecer.

O especialista ainda aponta que o emprego do feminino, ou a priorização de expressões no feminino, vem crescendo tanto na língua escrita quanto na língua falada. Já o emprego de "e" para marcar uma palavra neutra parece mais restrito. Um dos conceitos da linguagem neutra é o de substituir as letras “a” e “o” em adjetivos para tornar essas palavras ainda mais neutras.

Para o pesquisador e ativista trans Oliver Balbi, o Brasil, como a maior parte dos países de línguas latinas, tem em sua gramática normas que prescrevem o que deve ser usado, mesmo que essas regras não estejam mais no dia a dia dos falantes. “Diferente do inglês, no qual as gramáticas tendem a descrever o uso que os falantes fazem da língua, no Brasil há normas que prescrevem o que deve ser usado”, declara. 

Portanto, para Oliver colocar nessa gramática prescritiva novas normas, principalmente essas que têm um caráter político tão fortemente marcado, é complexo, pois quem define o que seria o “correto” são pessoas com poder social e estas não se beneficiariam com as mudanças estruturais que isso poderia causar.

Schwindt acredita que um dos principais desafios de uma linguagem inclusiva na Língua Portuguesa está na dificuldade de se estabelecer oposição com palavras. “De todos os gêneros, fechadas pelas três vogais de que dispomos para o final das palavras, exemplo de o livro/a tribo, o/a linguista, o pente/a ponte, o mecanismo de concordância e o sistema de recuperação pronominal”, explica.

“O desafio maior no caso do uso inclusivo da linguagem, em minha opinião, é o de compreensão do que ela significa, de seu valor social e estrutural. O acesso à informação, em geral, é atrapalhado pelo preconceito, que se espalha mais rápido em geral do que o conhecimento”, continua.


A banalização e a desinformação são as maiores armas usadas contra a linguagem neutra, não só no português brasileiro, como no inglês, no espanhol, no francês, no alemão, todos exemplos de línguas que estão propondo a linguagem neutra dentro de seus sistemas. Para além das redes sociais, o campo da linguística, ciência que estuda o idioma e seus diversos fenômenos, também tem olhado cada vez mais para a linguagem neutra.

Entenda os termos

Cabulcci afirma que o termo "linguagem neutra" é bastante amplo, desde a tentativa de se criarem construções linguísticas para abarcar pessoas não-binárias até o caminho de diminuir a tendência da Língua Portuguesa de utilizar o gênero masculino. Na prática, para o especialista, o que seria esta linguagem neutra é um desafio, uma vez que ela está em processo de construção e o tempo todo se modificando. Isso não é protagonizado por uma pessoa, mas pelo conjunto de ações. 

Já para Schwindt, há uma confusão entre o termo “linguagem neutra” e “linguagem queer”, que são termos complementares, mas não iguais. O especialista informa que o que se vem chamando de "linguagem neutra" caracteriza-se pelo emprego de recursos gramaticais ou discursivos com o objetivo de reduzir a desigualdade na linguagem, opondo-se em geral à prevalência do masculino. 

Enquanto isso, "linguagem queer" é um termo menos consensual, mas pode, num sentido particular, referir-se a um dialeto específico da linguagem da comunidade LGBTQIA+. Há, por outro lado, um ramo da linguística que se rotula como linguística queer, de acordo com o especialista, que se ocupa sobretudo de questões identitárias, olhando para a relação entre linguagem, gênero e sexualidade.

A importância

Para Pri Bertucci, da Diversity BBOX, consultoria especializada em diversidade, a língua portuguesa não é flexível o suficiente para designar alguém que não se sente nem homem e nem mulher, por isso a importância da linguagem neutra. “Ou melhor, para designar alguém que não se sente ora um, ora outra ou para quem não se conforma com as normas de gênero”, explica. 

Calbucci relembra que como a língua perpetua preconceitos na sociedade -- machismo, sexismo e racismo -- alterá-la pode ser uma boa estratégia. No entanto, o especialista aponta que a mudança da linguagem não necessariamente levaria ao fim do preconceito. E nem ao contrário, que o fim do preconceito levará a mudança da linguagem. 

Oliver chama atenção que a língua tem um poder enorme na vida em sociedade. “Um exemplo fictício seria: 'Traficante é presa com cocaína na mala' que também poderia ser escrito como “mulher voltando de viagem da Europa é encontrada com drogas em sua mala”. O ocorrido é o mesmo, mas a forma como o descrevemos muda completamente a nossa visão sobre ele”, aborda. 

Schwindt finaliza que não há garantia que uma mudança envolvendo marcas de gênero de fato se implemente em português, e, caso se implemente, não se pode assegurar que isso resultará na redução do preconceito. Contudo, se o simples debate em torno do tema permitir que se enxergue o outro em sua diferença, já há avanços.