Por que pessoas LGBTQIAP+ estão voltando a usar a sigla GLS?

Nas redes sociais, as novas gerações LGBTQIAP+ passaram a usar a sigla antiga para alfinetar pessoas hétero; entenda

Foto: FreePik
GLS voltou como meme por parte da própria comunidade LGBTQIAP+




Um efeito curioso está acontecendo no perfil de pessoas LGBTQIAP+ : acontece que pessoas das gerações mais novas voltaram a usar a sigla GLS para se referir a si mesmas. Criada nos anos 1990, a sigla GLS caiu em desuso no ano de 2008 por não ser considerada inclusiva. No entanto, pessoas LGBTs voltaram a utilizá-la como uma forma de satirizar pessoas héteros.

A estudante de biologia Alice Gouveia, 22, diz que percebeu o fenômeno acontecer em sua bolha nas redes sociais no início de 2021. Ela descobriu quando viu o meme postado pela cantora MC Melody ao lado de duas drag queens. "Amo os gays LGBT, povo animado", escreveu a cantora em seu perfil no Facebook. O post viralizou e virou uma piada interna da comunidade.

“Foi quando entendi o motivo pelo qual as pessoas que eu sigo estavam usando a denominação GLS. Eram amigos próximos, também da comunidade, então percebi logo de cara que era uma piada”, explica Alice, que é bissexual. Ela ressalta que a brincadeira é feita apenas entre seus melhores amigos, que também usam a sigla nesse contexto.


"Sempre entendi que usar esse termo é um meme, porque as próprias pessoas excluídas pela sigla GLS usam de maneira irônica quando se referem a elas mesmas", acrescenta a designer Vanessa*, 21, que também é bissexual e não quer ser identificada.




Por que o GLS voltou?

A postagem de MC Melody não é a outra explicação utilizada pela comunidade para o uso do termo. O GLS, ou ainda “mundinho GLS”, foi uma resposta satírica à maneira como personalidades famosas e heterossexuais passaram a falar da sigla estendida LGBTQIAP+, tida como a correta e mais inclusiva atualmente.


Exemplos disso são a atriz Susana Vieira, que no mês do orgulho LGBTQIAP+ errou a sigla em diversos vídeos de apoio; a apresentadora Patrícia Abravanel que após defender Rafa Kalimann por ter postado um vídeo homofóbico, afirmou que a comunidade precisa ter paciência com héteros. Além disso, Abravanel virou piada entre LGBTs ao apresentar todas as letras da sigla estendida .


A dificuldade de pessoas héteros em relação à sigla estendida e outros termos da comunidade fez com que o GLS voltasse à tona como provocação. “A gente usa esses termos homofóbicos para ironizar alguma situação de homofobia ou para falar de preconceitos que nós mesmos já tínhamos passado”, afirma Alice.

A socialite Narcisa Tamborindeguy pode estar envolvida no ressurgimento do GLS. Narcisa é vista como uma simpatizante do movimento e por muitas vezes se posiciona desta maneira. No entanto, é criticada por se referir às pessoas LGBTs apenas como sinônimo de alegria e festas, ocultando diversas demandas de direitos humanos da comunidade.

Alice explica que a antiga sigla dá espaço para que pessoas héteros entrem no movimento e tirem o protagonismo da luta LGBT, motivo pelo qual ela pode ser utilizada em um contexto de seriedade. “Isso me aborrece profundamente. Já vi casos de héteros tentando roubar protagonismo da luta LGBT e estar à frente de nós”, acrescenta.

Além da sigla antiquada, a comunidade também se apropriou do termo “criatura gay”, usado de maneira homofóbica pelo cantor e ex-BBB Rodolffo ao se referir a pessoas LGBTQIA+ . “Eu gosto demais de um monte de gays. Eu não tenho preconceito para estar junto, bater papo, dar risada. Aliás, uma das criaturas que mais me fazem dar risada é a criatura gay. E tá tudo certo”, diz o sertanejo em um vídeo.

Tanto o uso da sigla GLS ou termos propositalmente homofóbicos só podem ser utilizados como humor dentro da comunidade. Isso segue a lógica de adjetivos como "bicha" e "sapatão", por exemplo: usadas como ofensa, essas palavras foram readaptadas entre LGBTs em contextos não violentos e só podem ser utilizados desta forma dentro da própria comunidade. 

A sigla GLS

De acordo com Pri Bertucci, CEO do instituto [SSEX BBOX], a sigla GLS foi criada em 1994 como uma maneira de representar pessoas gays, lésbicas e simpatizantes. Por muito tempo, essa foi a sigla que passou a definir espaços direcionados para a comunidade, tendo como termo mais lembrado a “balada GLS”. A sigla foi relevante para garantir a visibilidade da comunidade naquele contexto; no entanto, Bertucci afirma que ela não era inclusiva o suficiente.

No ano de 2008, foi realizada a 1ª Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexias, Trans e Travestis para debater a atualização da sigla, que seria denominada como GLBT. “Aconteceu um debate muito importante sobre representatividade da mulher lésbica no movimento, o que acabou por colocando a letra L à frente de todas as outras com intuito de dar visibilidade e reconhecer o movimento internacional, que já usava LGBT”, explica Bertucci.

No ano de 2013, seu instituto trouxe para o Brasil a versão atualizada da sigla, hoje denominada como LGBTQIAP+ e que inclui também pessoas transgênero, travestis, queers, não-binárias e outras identidades e expressões não reivindicadas. O P foi a última letra a ser incluída, em 2018, e representa a pansexualidade e polissexualidade.

Sigla deve ficar no passado

Apesar do novo significado dado à sigla GLS, ainda existem muitas pessoas que continuam a utilizá-la para se referir a pessoas LGBTs. Para Bertucci, é preciso elevar o patamar das abordagens sobre diversidades e grupos minoritários para a sociedade em geral.

“Percebemos que não existe um senso comum no vocabulário usado por muitos grupos, principalmente as pessoas que se colocam no mercado como profissionais de diversidade no Brasil. O problema disso é um grande efeito cascata de desinformação generalizada”, explica o ativista.

Além do conhecimento de saber como se referir à comunidade, Bertucci defende ainda o uso de palavras inclusivas, o entendimento sobre a linguagem neutra e comunicação inclusiva  e, mais ainda, sobre a importância da equidade e inclusão de LGBTQIAP+ na sociedade.

“Incluir significa, primariamente, aceitar a natureza humana em toda a sua enorme variedade, entender que as pessoas expressam suas identidades e suas sexualidades de modos únicos e que todos esses modos são legítimos, desde que tudo esteja embasado em consentimento”, explica Pri.

O instituto [SSEX BBOX] possui uma série de cursos para abordar a sigla e comunicação inclusiva, incluindo um glossário para tornar esse conhecimento mais acessível. Há ainda um contra-glossário que inclui termos e palavras que caíram em desuso e estão incorretas, como “opção sexual”, “homossexualismo” e “casamento entre pessoas do mesmo sexo”. “Consta no nosso contra-glossário que GLS é um termo cafona e démodé”, explica.

Apesar de usarem o termo com ironia, Alice e Vanessa afirmam que jamais utilizaram a sigla em um contexto de seriedade justamente pelo seu teor ultrapassado e excludente. “Afinal eu sou o B do LGBTQIAP+ e se eu falasse GLS em um contexto sério, estaria excluindo minha própria letra”, explica Vanessa.

A designer inclui ainda que, ao seu ver, o termo GLS parece remeter a uma certa nostalgia de gerações que viveram de forma ativa o movimento nos anos 1990. “Me faz pensar de quando o movimento estava em ascensão, quando as coisas eram mais antiquadas. Sempre que falo GLS me vem o Serginho do BBB na cabeça com aquela estética clubber e andrógina”, lembra Vanessa.

“Não tenho tolerância para qualquer tipo de preconceito, então nunca nem fui questionada sobre usar GLS. Até porque faço isso em uma bolha onde a maioria das pessoas são da comunidade. Todo mundo sabe abertamente da minha sexualidade e da minha militância. Sempre sabem que estou brincando”, diz Alice.