“Ainda não entendem nossa pluralidade”, diz Liniker sobre pessoas trans
Cantora estreia pela primeira vez como atriz na série “Manhãs de Setembro”, da Amazon Prime Video, em que interpreta uma fã de Vanusa que descobre ter um filho; em segundo plano, série retrata diversidades marginalizadas
A cantora Liniker aparece como atriz pela primeira vez na série “Manhãs de Setembro” , lançada pela Amazon Prime Video na última semana. A produção retrata uma mulher trans que é muito fã da cantora Vanusa e, certo dia, descobre que tem um filho de 10 anos. Tendo como principal fio condutor relações familiares, a série também retrata a comunidade trans e preta sem ignorar suas complexidades.
A liberdade de estereótipos em relação à comunidade trans foi o que fez com que Liniker topasse o papel de Cassandra, seu primeiro trabalho como atriz. “O que mais me atraiu foi a possibilidade de criar um imaginário real sobre uma pessoa trans, tendo em vista o país em que vivemos e toda a violência que pessoas trans e negras sofrem”, diz a cantora e atriz em coletiva de imprensa de divulgação da série.
Além disso, “Manhãs de Setembro” retrata uma pessoa trans que tenta sobreviver e que possui um núcleo de apoio, uma realidade que, para Liniker, é importante para humanizar as vivências da comunidade. “Ela é uma personagem que tinha relação humana e social. Cassandra não estava nesse lugar encaixotado, que é sempre em situação de violência e marginalizado”, explica.
Pouco depois de conquistar sua independência, Cassandra é encontrada por Leide, personagem vivida por Karine Teles, que revela que ela tem um filho, Gersinho (Gustavo Coelho). A partir daí, a narrativa da série expande e explora diversas camadas dessas personagens.
A homenagem para Vanusa na série vem desde seu título até músicas que tocam ao longo dos episódios. Mas a relação mais curiosa é a que Cassandra tem com Vanusa em sua vida pessoal: a icônica cantora é uma espécie de amiga imaginária, que vai criando diálogos e dando conselhos para Cassandra.
Liniker define a relação de sua personagem e de Vanusa como uma bússola. “A personagem cria algo familiar com a ídola”, afirma. Viver a personagem fez com que a relação de Liniker com Vanusa mudasse. “Passei a admirá-la ainda mais. Desde quando ela iniciou nos anos 1960 ela trouxe uma tecnologia dentro do vanguardismo muito grande, ela inicia muitas coisas.”
Liniker afirma que se identifica com Cassandra por ser uma pessoa que não tem medo de tentar. “Penso na minha trajetória saindo de Araraquara e indo para São Paulo atuar, sem família, sem dinheiro, sem nada e ainda transicionando sozinha. Me vi assim. Uma coisa que a Cassandra trouxe para mim foi coragem, de coisas pequenas, de ir para frente, de demarcar o meu espaço. Ela me fez desejar como há muito tempo eu desejava”, diz.
Maternidade
A personagem de Karine é uma vendedora ambulante que mora com o filho dentro de um carro, embaixo de um viaduto, após ser despejada de uma pensão. Para a atriz, a série retrata a realidade de milhões de pessoas que vivem em situação de falta de moradia no Brasil.
“A Leide, assim como a Cassandra, é como uma das milhares de pessoas do nosso país que estão presas em um sistema em que elas não conseguem trabalho formal. As duas fazem o corre delas para conseguir dinheiro do jeito que é possível, sem nenhuma estabilidade ou direito trabalhista”, afirma a atriz.
A maternidade é muito presente nos arcos das duas personagens. Karine afirma que Leide também é uma representação das mulheres que se tornam mães solo. Por outro lado, Cassandra, de Liniker, representa a maternidade trans.
Liniker explica que vê a maternidade trans ainda como um assunto complexo na sociedade devido à transfobia. “Ainda não entendem nossa pluralidade enquanto seres humanos, como pessoas capazes de criar. Acho que a Cassandra ser banhada por esse filho que chega e seu afeto faz com que ela comece a reformular o próprio afeto dela”, diz.
Apesar das adversidades que as duas enfrentam na série, Liniker se admira em relação à perseverança que as duas apresentam. “Por mais marginalizadas que estejam as duas têm muita esperança e não deixam de sonhar — seja Cassandra querendo ter uma família e uma casa, seja a Leide criando o menino da melhor forma que ela pode. Pode ser que as pessoas se sintam muito contempladas por personagens tão humanas que querem coisas tão simples e básicas”, explica.
Sala de roteiro diversa
A sala de roteiro da série foi chefiada pela argentina Josefina Trotta e tinha como uma das principais roteiristas a brasileira Alice Marcone, também uma mulher trans. Trotta explica que o que ajudou a tornar a diversidade mais real em “Manhãs de Setembro” foi, justamente, a diversidade de pessoas na sala de roteiro, onde a história é desenvolvida. “A vida do roteirista acaba moldando as narrativas. As experiências da série foram moldadas tendo em vista essa diversidade e pluralidade”, diz.
Marcone afirma que ter todos os tipos de pessoas possíveis para pensar o roteiro ajuda a humanizar os personagens. No entanto, a representatividade não é tratada como tema central da série. “A gente tem tramas, arcos narrativos e histórias que focam em conflitos muito mais abrangentes, muito universais. A gente tá falando de família, mas a gente tem essas personagens negras, LGBTQIA+, de classes sociais inferiores vivendo essas histórias”, explica a roteirista.
Liniker acredita que a presença de Marcone na sala de roteiro foi o que ajudou a tirar a Cassandra e outras personagens trans da série estereotipadas e encaixotadas. “Uma roteirista trans que tem a vivência do que é ser uma mulher trans, uma travesti, me deu segurança de saber que a Cassandra não estaria exposta dramaturgicamente.
O fato de não estar distante da realidade em que Cassandra está inserida também ajudou Liniker a vivê-la. “Conheço outras Cassandras, pessoas que já passaram por isso e que estão na luta diária de sobreviver. Dentro desse ponto de vista, não foi tão difícil criar essas personagens”, explica.
Também se tratando de família, “Manhãs de Setembro” reforça que pessoas trans, apesar de marginalizadas e sofredoras da transfobia e racismo, também têm direito ao amor e acolhimento. Além disso, elas também constroem para si esses espaços seguros.
“Seja pessoas pretas ou trans, é a gente que se dá suporte. Se fossemos depender de quem está lá fora, não teríamos esse acolhimento. Assim, as famílias que assistirem a série podem sentir abrir um espaço de afeto e carinho”, afirma Liniker.
A cantora e atriz diz que o resultado das gravações a deixou feliz e que espera que “Manhãs de Setembro” abra espaço para uma representação mais ampla das pessoas trans no audiovisual. “Espero que essas personagens possam ser humanizadas. Acho que a responsabilidade disso é de quem está a frente do audiovisual. A nossa é de sobreviver”.