Androginia: a identidade capaz de hackear as noções sobre gêneros

Identidade e expressão de gênero estão relacionadas às pessoas que possuem atributos femininos e masculinos e se identificam com ambos; saiba o que é a androginia

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A androginia é uma identidade e expressão de gênero que estão relacionados a uma mistura de códigos que correspondem a masculinidade e a feminilidade




Quando o modelo e ator Gabriel Rocha, 28, se apresentava para as pessoas como um homem, muitas ficavam espantadas. Aos 18, mesmo com os cabelos curtos, as feições e a maneira delicada de se portar, somados a sua voz doce, faziam com que os outros jurassem que ele era uma mulher. Naquela época, ele ainda não sabia que era uma pessoa andrógina.

A resposta ao ouvir a expressão “me chamo Gabriel” era um olhar confuso de cima a baixo. Um ano mais tarde, quando deixou seus cabelos crescerem, ele passou a ser chamado apenas pelo feminino por quem não o conhecia.

“Quando criança, eu fazia canto e eu sempre fui um soprano. Tinha muita gente que achava que eu forçava a minha voz, que já tinha tomado hormônio. Fui passando pelo período da adolescência e as pessoas perceberam que tinha muito mais delicadeza em mim do que só a minha voz, que hoje é um timbre contratenor”, explica Gabriel.


Essa descrição da infância é similar no caso de Oompa Teixeira Merguliano, 25, ator e jornalista. Designado ao nascer como um homem, a maneira de se expressar nunca foi por meio de trejeitos masculinos. Sua família o apoiava e dizia saber que ele era gay, mas a questão para Oompa ia além da orientação afetivo-sexual.

“Mesmo depois que me assumi, ainda sentia um vazio. Aos 13 anos, comecei a dizer que eu não era nem homem e nem mulher, que eu era ímpar. Naquela época eu não fazia ideia sobre o que era uma pessoa andrógina e não-binária, mas isso sempre foi muito claro para mim. Abri mão de tentar me rotular”, explica.

Para Gabriel, parte da resposta aos questionamentos e reações que recebia vieram em páginas de revista. Certa vez, ele e uma amiga ficaram fascinados ao ler uma entrevista da modelo Andreja Pejić sobre androginia. “Minha amiga me olhou e disse: ‘Gabriel, eu descobri tudo. Você é andrógino’. Ficamos maravilhados com aquilo. Foi aí que eu comecei a entender o porquê das pessoas ao meu redor me tratarem no feminino”, diz o modelo.

O que é a androginia?

O filósofo e pesquisador Ali Prando explica que a androginia é uma identidade e expressão de gênero que estão relacionados a uma mistura de códigos que correspondem a masculinidade e a feminilidade, unidos em um só corpo. Dessa forma, o gênero ao qual aquela determinada pessoa se identifica foge das definições “óbvias”, tornando-o mais complicado de entender à primeira vista.

Apesar de não existir uma definição exata de quando o conceito de androginia surgiu, Prando explica que a definição foi apresentada pela primeira vez por Platão, no livro “O Banquete”. No conto, os andróginos eram seres míticos que possuíam características masculinas e femininas.

“De acordo com o mito, pelo fato de serem perfeitos, o todo poderoso e ciumento Zeus os puniu cortando-os ao meio. Hoje, essas metades são pessoas homens e mulheres que sofrem por sua incompletude e procuram a sua ‘metade’ perdida”, detalha o analista e sociólogo Jorge Miklos em seu artigo “Simbolismo da Integração”.

Quando o termo é empregado para falar sobre identidade de gênero, muitas vezes é confundido com outras definições, como a intersexualidade e a transgeneridade. Apesar de serem conceitos que dialogam entre si, Prando diz que não são necessariamente a mesma coisa.

“A intersexualidade diz respeito às características dos órgãos tidos como sexuais que não se encaixam nas noções binárias de masculino ou feminino. A transgeneridade funciona como um termo guarda-chuva para as identidades e expressões de gênero de pessoas que não se encaixam na binariedade de masculino e feminino”, disserta o filósofo.

Gabriel afirma que, para ele, a androginia é vista como uma maneira que vai além da neutralidade dos gêneros. “Entendo a androginia como uma questão de nuances, não de fusões. A pessoa que nasce dessa maneira passa a ser vista tanto no feminino como no masculino. Tive que compreender que pertencia a essa não-binariedade”, diz.


Depois de descobrir que o termo existia naquelas páginas de revista, o modelo passou a pesquisar cada vez mais. Foi quando ele passou a se sentir abraçado por seu jeito de ser. “Pude compreender que eu não estava agindo de uma maneira errada, proposital. Eu nasci, cresci, me desenvolvi e fiquei assim. Eu achei uma resposta para aquilo que me perseguia e consegui compreender que estava tudo bem com o feminino e o masculino em mim.”

Apesar dos gêneros serem atribuídos às pessoas como algo natural, Prando acredita que existem formações pré-determinadas pela sociedade. “Pessoas com vagina precisam obrigatoriamente serem atraídas por homens, terem cabelos longos, delicadeza, usar maquiagens. Pessoas com pênis precisam se atrair por mulheres, terem cabelos curtos, agressividade, dominação e etc”.

Essas definições se tornam violentas por impor que determinadas pessoas sejam e ajam de determinados jeitos. “A androginia aparece como um hackeamento de gênero, mostrando que existem outras possibilidades de existência no mundo para além da heteronormatividade. Nosso corpo deve ser interpretado como um código aberto, um livro”, opina Prando.

Oompa afirma que, pela maneira pessoal de cada pessoa andrógina, é possível quebrar com uma série de padrões sociais. Por sua maneira de ser, sentia que os olhares sempre estavam nele, independentemente se estivesse usando meia-calça e lápis de olho ou calça jeans e camiseta.

“O negócio é a sua aura, então acho que entender o seu gênero e ser você mesmo sem se preocupar em tentar se explicar já transmite muito. Quando você se permite sentir, tudo vem de uma forma natural”, afirma Oompa.


Apesar da representatividade, androginia ainda não é visibilizada


Prando conta que a androginia foi usada como linguagem visual por grandes estrelas do século 20, apesar de algumas não se identificarem com a expressão como uma identidade de gênero. Madonna, David Bowie, Boy George, Prince, Grace Jones, Marlene Dietrich e Annie Lennox são alguns casos.

Mais do que representar uma nova maneira de ver o mundo, o filósofo explica que é função da arte apontar para novos mundos e maneiras de existência. “Esses artistas nos ajudam a perceber diferentes usos dos corpos como eles estavam presos e encalacrados em coreografias sexuais e de gênero que não foram criadas por nós, mas pelo patriarcalismo com intenções de nos oprimir e nos fazer menos livres”, diz.

Há atualmente um impulsionamento da androginia na moda ou na cultura pop, seja em desfiles, peças publicitárias ou em suas coleções. Com isso, artistas como King Princess, Harry Styles e Ruby Rose são vistos estampados em tapetes vermelhos ou em outdoors representando marcas como Gucci e Calvin Klein, por exemplo.

Atualmente, a androginia é encarada principalmente como uma expressão de gênero, algo que, na visão de Gabriel, pode ser complicado. “Quando você se expressa, você coloca uma maneira como quer ser visto e comigo não é assim. Eu nunca fiz nada para ser assim, sempre me expressei como masculino mas era enxergado como feminino. Não é sobre uma roupa ou sobre um corte de cabelo. Uma pessoa andrógina não se expressa de determinada maneira, ela simplesmente é”, diz.

O próprio modelo comenta que sua carreira não ficou mais facilitada por conta dessa alta exposição à androginia. Ele explica que todos os seus trabalhos foram feitos por acaso, mas que nunca foi representado por uma agência porque elas achavam que contratá-lo poderia ser um tiro no pé.

“Quando eu morava no Rio de Janeiro, uma agência me disse que eu tinha que ir para São Paulo ser modelo porque lá eles com certeza me mandariam para Milão. Quando fui para São Paulo, me disseram que eu tinha tudo para ir para Milão e deveria ir. Quando expliquei que fui para lá para que eles me ajudassem a ir para Milão, disseram que a agência não contratava meu perfil, mas que se eu tentasse ir para lá daria tudo certo para mim”, narra.

Na visão do modelo, as marcas brasileiras ainda estão fechadas para a androginia. “Existe uma linha tênue entre pessoas compreenderem e quererem apostar. Ouvi e vi coisas que fizeram com que minha carreira de modelo nunca acontecesse no Brasil”, acrescenta.

O futuro é andrógino

Oompa explica que fantasia com uma sociedade utópica que não precisará mais fazer distinções de gênero e de orientações sexual-afetivas. “Quero que as pessoas entendam que cada um é seu próprio universo, cada um tem suas facetas. Por que o fato de sermos homens ou mulheres importa? Não temos a menor necessidade de dizer nossos gêneros ou qual é o nosso órgão sexual, a não ser que seja para um médico”, afirma.


Esse desejo de eliminar as distinções de gênero é também uma corrente de pensamento de filósofos, ativistas e pensadores de gênero. Para Prando, a androginia pode apontar para uma nova ótica de se pensar gênero, que visa tornar a binariedade um atributo sem importância.

“No futuro, perceberemos que as divisões que acontecem por gênero fazem tanto sentido quanto agora fazem as divisões baseadas na ficção da raça que existia nos Estados Unidos no século 20, que geraram o Apartheid no país”, lembra.

Apesar de não ser possível prever como as discussões de gênero atuais podem impactar o futuro, compreender a androginia é um passo importante para garantir que pessoas andróginas possam entender e aceitar o corpo em que habitam. Para Gabriel, o momento em que passou a se definir dessa forma se tornou um divisor de águas em sua vida. Assim, a androginia permite que ele permeie pelos gêneros e flutue entre eles de forma sutil.

“Fazer com que as pessoas compreendam ainda é uma luta diária, mas ter essa compreensão é libertador, consegui respirar mais aliviado. Quando faço uma campanha para alguma marca de roupas ou maquiagens, vejo as pessoas me olhando e compreendendo que aquilo é completamente natural. Foi importante para que eu tivesse cada vez mais compreensão de quem eu sou e me entender cada dia mais”.