Artistas trans se reúnem em grupos para superar as dificuldades na carreira
Objetivo é combater a falta de representatividade nos campos das artes e o transfake, que contribui com o apagamento da comunidade trans; Os grupos contam com teatro, literatura, circo, performance, música, artes plásticas, audiovisual e outros
Leo Moreira Sá é ator, iluminador premiado, roteirista e dramaturgo. Formado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP) e registrado como jornalista, não chegou a fazer graduação no campo das artes, mas se considera um artista por inteiro. Apesar disso, vive em constante formação. Em 2010, fez cursos de iluminação e designer. No ano passado, cursos de atuação para câmera, direção para atores, roteiro para séries e, neste momento, está fazendo aulas de roteiro, tudo pela SP Escola de Teatro.
“Eu não paro de estudar, não paro de ler, não paro de tentar evoluir dentro da minha carreira e como ser humano. Eu acho que eu sou um artista desde que eu nasci, me lembro de desenhar, quando era criança, de sempre ter essa tendência para a arte”, diz ele.
Apesar disso e uma carreira de mais de 10 anos nas artes, ele afirma que ainda existem muitas dificuldades para um homem trans trabalhar nesse mercado
. Para ele, os atores e atrizes trans ainda são muito preteridos em seleções de teatro e cinema. “Somos sequestrados na atuação, nas nossas vivências, nossas histórias pelos fakes [transfake]
, que acabam fazendo os nossos papéis ao invés de destinar justamente essa fina fatia do mercado, de personagens trans
, para nós”, afirma Moreira Sá.
Pessoas trans de todo o Brasil vivem a mesma realidade ao tentar trabalhar no campo das artes. Por isso, a atriz Renata Carvalho criou, em 2017, o Movimento Nacional de Artistas Trans (Monart), com objetivo de aumentar a representatividade
, inclusão e permanecia de pessoas trans nos espaços de atuação e criação artística. Hoje, o grupo conta com 200 artistas, dentre eles Leo Moreira Sá, de diversas cidades brasileiras e variadas linguagens: teatro, literatura, circo, performance, música, artes plásticas, audiovisual entre outros.
A ideia é provar para toda a população e profissionais cisgêneros das artes que há muitos profissionais trans capacitados para exercer papéis relevantes no segmento.
Moreira Sá, por exemplo, que deu início à carreira artística no teatro, como ator e também como iluminador, em 2010, possui vasta experiência em peças, filmes e séries. Ele conta que seu trabalho com o teatro possibilitou que ele mudasse de vida. Em 2011, conseguiu fazer a cirurgia de mamoplastia masculinizadora
, para retirada dos seios após receber um prêmio Shell, em dinheiro, pela execução do desenho de luz do espetáculo Cabaré Extravaganza, que dividiu com o diretor Rodolfo Garcia Vasques.
Moreira Sá fez participações em “Psi” (HBO), “O Pacto de Sangue” (Canal Space, disponível na Netflix) e “O Negócio” (HBO), em que interpretou o pai trans de uma das protagonistas. Recentemente, ele interpretou um dos personagens coadjuvantes do filme "Vento Seco", ainda inédito no Brasil, mas que estreou no festival Internacional de Cinema de Berlim em 2020.
Mesmo com toda essa experiência, Moreira Sá fala sobre grandes dificuldades para atores trans, principalmente os homens. “É possível ver algumas participações pequenas de mulheres trans e travestis em algumas produções do audiovisual. Agora, os transmasculines, somos completamente ignorados. Existe uma ausência de personagens transmasculinas. Não existe interesse na construção de um personagem transmasculino. Nós temos talento, capacidade profissional e essa história de que não existe ator... temos que quebrar esse ciclo de invisibilidade e apagamento das nossas identidades, corpos e expressões artísticas”, opina.
Ele conta que, em quase 12 anos de carreira, recebeu diversos convites para interpretar personagens, mas, na maioria deles, sem muita importância para a história. “Quase uma figuração” e exemplifica: “Em 2018, fui chamado para atuar em um filme que tinha como protagonista um personagem que era um homem trans, mas quem iria interpretar era um homem cis. Perguntei o por quê, não precisava ser eu, mas existem muitos outros atores trans. A justificativa foi de que o diretor confiava naquele ator. No fim, a minha participação, sem nenhuma fala, que durou menos de três minutos, serviu apenas para justificar o transfake do filme. Para que possam dizer: o personagem trans é feito por esse homem cis, mas a gente tem um ator trans no elenco também’”, conta.
A maior dificuldade para o ator ao encontrar esse tipo de trabalho é a questão precarização da vida das pessoas trans. “A gente recebe mal. E quando somos convidados para pequenos papéis assim, acaba aceitando. Como eu poderia dizer não para um trabalho que iria pagar as minhas contas do mês? É muito difícil. Mas, o que devíamos fazer era dizer não a papéis que não nos valorize. Representatividade é estar presente, sim, mas ter valor também”, finaliza Moreira Sá.
Um outro grupo, o Coletivo de Artistas Transmasculines (Cats), formado por homens trans de todo o país, lançou um manifesto nas redes sociais sobre o tema, reivindicando visibilidade e representatividade (veja abaixo).
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De certa forma, Leona Jhovs, 33, vive o mesmo apagamento que Leo Moreira Sá. Ele argumenta que a situação para os homens trans é ainda pior, o cenário não é muito mais bonito para as travestis. Atuante no campo das artes há dez anos, Leona diz que vive aos “trancos e barrancos”. Atriz, diretora e roteirista, ela nunca conseguiu finalizar uma formação pelas dificuldades que sempre enfrentou em sala de aula.
“A minha formação é a vida porque, quando eu comecei a estudar teatro lá nos meus 14 para 15 anos, eu precisei trabalhar e não tive condições de cursar uma faculdade. Mesmo assim, fui me jogando em pequenos cursos de teatro. Em 2013, cheguei na companhia de teatro que faço parte hoje, a Pessoal do Faroeste, e eu acredito que, nela, tive uma formação muito valiosa. Comecei recebendo o público, fui para o bar, depois para o financeiro, administrativo, produção, assistente de direção. Hoje, faz seis anos que estou palco, atuando e me construindo sempre”, conta Leona.
Para ela, ser atriz e travesti é mais difícil porque serão dificuldades específicas a serem enfrentadas, relacionadas a discriminação. E diz que teve sorte ao encontrar um grupo de teatro que abriu as portas para ela atuar.
“Sempre questionam por que estou fazendo uma personagem, por que sou trans e a personagem é trans. Questionam se eu fui escolhida para interpretar apenas por ser bonita [e não pelo talento]. Sempre percebo uma tentativa de exclusão, de apagamento. Mas eu resisto desde sempre e a minha arte também”, afirma Leona.
Uma das principais bandeiras do Monart é naturalização dos corpos trans nas artes, para que deixem de ser questionados e que, como resultados isso ajude a reduzir a discriminação e o número de mortes no Brasil. Para isso, o movimento propõe uma pausa na prática do transfake [que consiste em pessoas cisgênero interpretando pessoas trans no teatro e no audiovisual]
em todo o país.
“Como transcóloga [neologismo para pesquisadora da transexualidade], eu tenho certeza que, se incluirmos os corpos trans na arte e deixarmos eles permanecerem, daqui a 30 anos esse país não será o que mais mata travestis e transexuais no mundo. Nossos corpos já vão ter sido naturalizados e, consequentemente, humanizados”, declara a fundadora do grupo, Renata Carvalho, sobre o objetivo do grupo.