Lacraia: 10 anos da morte da travesti que marcou a história LGBT+ do país

Em uma época em que Pabllo Vittar e Gloria Groove são aclamadas, é fácil assimilar que se estivesse viva, Lacraia teria mais reconhecimento do que jamais teve

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Morte de Lacraia completa 10 anos em 2021

Camareira de sauna gay, maquiadora, cabeleireira e drag queen. Há muito mais sobre a vida de Lacraia do que a internet pode contar. Sucesso nos anos 2000, a travesti foi um marco no funk e assim como afirma seu ex-parceiro de palco, MC Serginho, "quebrou barreiras intransponíveis para o movimento LGBTQIA+" ao colocar-se na linha de frente contra o preconceito.

Em uma época em que Pabllo Vittar e Gloria Groove são recordistas de prêmios e aclamadas pelo público, é fácil assimilar que se estivesse viva, Lacraia, que terá seu nome de batismo preservado nesta reportagem, teria mais reconhecimento do que jamais teve.

Em maio de 2021, mais especificamente no dia 10, completa-se uma década da morte da artista. Por isso, o iG Queer conversou com MC Serginho, que trabalhou ao lado dela por 10 anos, convivendo, protegendo e semeando o que ele mesmo define como “uma amizade fraternal”. 

A vida antes da fama

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Militante contra AIDS, Lacraia fazia shows de transformismo como Volpi Jones

Nascida e criada na comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, Lacraia, de acordo com o Serginho, sempre foi “diferente” desde tenra idade. Ao contrário de muitos LGBTs, a dançarina sempre teve apoio da mãe, Dona Lisa, para expressar sua sexualidade, identidade de gênero e suas habilidades artísticas.  

“Nós éramos vizinhos desde criança. Apesar de não sermos amigos à época, como vizinho, a gente se acompanhava de longe. Quando ficamos amigos, soube que a família aceitava ela do jeito que era. Dona Lisa é sensacional, a família inteira tratava a Lacraia com o maior amor e carinho”, lembra MC Serginho.

Com a maioridade, Lacraia começou a trabalhar para ajudar em casa, mas sem deixar de apostar em seus sonhos. Nos anos 90, por exemplo, ela integrou o Teatro Expressionista da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids - coletivo que, por meio da arte, conscientizava a população sobre a doença. 

Provavelmente, lá aprendeu a lidar com maquiagem, pois pouco tempo depois começou a se apresentar como transformista - termo antigo para referir-se à drag queens - em casas noturnas do Rio. Entretanto, a carreira artística nunca se sobrepôs ao trabalho fixo.

“Quando ela ficou maior de idade, trabalhava como camareira em sauna gay, era maquiadora, cabeleireira e ainda fazia shows de transformista sob a alcunha de Volpi Jones, mas, mesmo quando estouramos, eu e ela nunca deixamos de ter nosso emprego diário”, comenta o funkeiro.

Não me chame de Lacraia!

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Lacraia não gostou do nome dado por Serginho até começar a ganhar dinheiro com ele

A relação entre Serginho e Lacraia, apesar de vizinhos desde cedo, apenas estreitou-se durante uma festividade na quadra do Salgueiro. De acordo com o funkeiro, um homem ameaçou a "meter a porrada" na dançarina por ser contra a sexualidade dela. Sem concordar com a situação, Serginho a protegeu no evento, selando uma irmandade que seguiu até a morte da artista.

"Eu cheguei para ele e disse: 'Ela não está fazendo nada, se mexer com ela vai ter porradaria (sic)'. Depois disso, eu comecei a chamar ela para dançar enquanto eu tocava nos bailes. De início, eu a apresentava como Margareth, depois como Robocop [em referência à música dos Mamonas Assassinas], até que teve um dia, enquanto eu montava a mesa de som, eu vi uma lacraia [o inseto] gigante ‘rebolando’ perto da aparelhagem. Quando o show começou e ela entrou em cena, eu comecei a gritar: ‘vai Lacraia, vai Lacraia’. Acabou que caiu no gosto popular”, lembrou ele.

Apesar do sucesso, o MC recordou que a colega de palco, de cara, não gostou nada do apelido. “Ela me disse que foi à feira com a mãe e todo mundo estava a chamando de Lacraia. Me ameaçou dizendo que se eu chamasse ela novamente de ‘Lacraia’ ia me dar um murro, porém, depois veio show atrás de show e ela acabou incorporando a personagem 48h por dia”.

Lacraia andou para que Pabllo pudesse voar

Mesmo acolhida pela família, Lacraia foi alvo de muito preconceito, assim como qualquer outra pessoa da época que ousasse revolucionar o status quo.

No funk, por exemplo, Serginho narra que conhecidos faziam comentários pouco agradáveis. “Me diziam com frequência: ‘Tu vai levar esse veado escroto para dançar no seu show?’. Eu respondia: ‘Claro, é meu amigo’”. 

Já na televisão, no “Programa da Eliana”, Lacraia encenou um casamento falso, no qual o noivo se recusou a tratá-la no feminino e não a beijou ao final da cerimônia. Para Caia Coelho, ativista trans que estuda a vida da artista, "o abandono era supostamente a ‘graça’ do quadro”. 

Líder nas paradas musicais, em 2004, a música “Égua Pocotó” foi trilha dos Jogos Olímpicos de Atenas. Com mais exposição, as especulações sobre a dupla aumentaram. 

“Eu sempre fui casado, com filha e família. E, do nada, as pessoas começaram a dizer que eu era veado também, depois diziam que eu comia a Lacraia ou que a Lacraia me comia… e apesar de errado, não me aborrecia”, conta Serginho. 

Mesmo com o preconceito do público e os rumores da imprensa, seguir um conselho bíblico - o de “dar a outra face” - foi o que manteve a dupla firme. “Quando as pessoas atiravam pedras, ao invés de revidar, a gente sempre oferecia um sorriso”, memora ele. 

Definida como “sempre alegre” pelo parceiro de palco, Lacraia, no entanto, sofria com toda a carga negativa que recebia. De acordo com Caia, que recordou uma entrevista, de 2016, com a mãe da artista, por baixo dos sorrisos tinha muita tristeza.

“Na entrevista, a mãe dizia que Lacraia era muito triste por tudo que sofria”, disse a ativista, sem citar o canal que veiculou a informação.

O Legado de Lacraia

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Muito além do funk, Lacraia sonhava com fama em escalas exorbitantes

Em 2009, após 10 anos na estrada com MC Serginho, Lacraia resolveu seguir carreira solo. Determinada, a artista sonhava em ser DJ de música eletrônica, em apresentar um programa infantil, em “ser a próxima Xuxa Preta”, como ela mesma disse em entrevista à revista M, em 2007. 

“Ela sempre quis. Estava fazendo um curso para ser DJ e queria serguir a vida dela, mas só as carreiras se separaram, a amizade não. Sou amigo da família até hoje, não houve nada que desabonasse nossa amizade”, narra Serginho, afastando rumores de briga entre os dois. 

Cheia de sonhos, a artista acabou por não realizá-los. Em 2011, ela foi internada no Hospital Universitário Gaffrée Guinle, na Tijuca, no Rio de Janeiro. Pouco tempo depois, aos 33 anos, ela acabou por morrer. 

Como a grande imprensa não noticiou o fato à época, a causa da morte oscila entre tuberculose e pneumonia. O Uol, por exemplo, baseou-se em um tuíte de David Brazil para cobrir o fato.

Ao lembrar sobre como soube da morte da amiga, MC Serginho adota tom de emoção. “Eu soube pela imprensa da morte dela. Eu sabia que ela estava internada e estava acompanhando, aí o David Brazil me disse que ela faleceu, foi horrível. Eu tive que parar o carro porque passei mal. Dá uma tristeza até hoje de não ter o amigo, de não ter irmã. Por outro lado, sinto muita alegria porque criamos um personagem que está vivo na cabeça das pessoas até hoje”. 

Questionado sobre o que a Lacraia representa para a sociedade LGBT+, o amigo, ex-parceiro de palco e “irmão”, não poupa palavras. “A Lacraia foi um marco histórico no movimento queer, me sinto até hoje usado por Deus para levá-la aos holofotes. O legal é que, antes de morrer, ela era orgulhosa do bem que tinha feito. Ela derrubou barreiras instransponíveis”.