"Prostituição tem que ser alternativa, e não compulsória", diz ativista trans

Apesar de terem conquistado mais espaço -- inclusive na política --, mercado de trabalho formal ainda exclui pessoas trans

Sem marcador identitário nas contratações formais, não há como saber quantas pessoas trans possuem emprego formal hoje no Brasil
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Sem marcador identitário nas contratações formais, não há como saber quantas pessoas trans possuem emprego formal hoje no Brasil

A população de  pessoas transgênero  vem conquistando mais espaço na sociedade, nas  vagas de trabalho e na universidade. Neste ano, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), foram eleitos 30 homens e mulheres trans como vereadores, em diversas cidades brasileiras. Apesar da empregabilidade ainda ser difícil para a maioria, iniciativas como o Transempregos ajudam a mudar isso.



Formada em biologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Agata Mostardeiro, 27, trabalha como educadora há um ano e meio no projeto Ação Rua, ligado à assistência social de Porto Alegre (RS). Ela foi contratada em um emprego formal após um processo de seleção comum, com entrevistas de grupo e sozinha. 

“Eu fiz a transição mais tarde, depois da seleção. Por sorte, entrei em uma instituição bem aberta à diversidade. Mas sei que, geralmente, não é assim”, conta Agata.

Em 2020, ela se candidatou a vereadora de Canoas (RS), pelo PT, onde mora e vive com a família. Recebeu 290 votos e não conseguiu se eleger. “Falta muito para avançar quanto aos direitos da população trans. Queria poder trabalhar de forma ativa pela comunidade LGBT”, afirma.

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Há um ano e meio, Agata Mostardeiro tem um trabalho formal em Porto Alegre (RS)




Transempregos

Para ajudar pessoas trans a entrarem no mercado de trabalho formal, foi criada, em 2013, a Transempregos, uma plataforma online voltada para a inclusão.

A organizacão atua em três frentes: banco de talentos; consultoria para empresas, para sanar dúvidas sobre pessoas trans para empresas -- e reduzir estigmas --; criação de processos seletivos e estimular mais inclusão nas empresas. O objetivo, além de aumentar a empregabilidade de pessoas trans, é construir espaços de trabalho mais respeitosos e diversos.

Com 667 parcerias -- 100 delas conquistadas nos últimos dois meses --, o projeto contribuiu para a contratação de 76 pessoas trans de todo o Brasil no último mês.

“Quando criamos a Transempregos, a gente tinha a meta de acabar com esse trabalho em 15 anos. A gente só vai considerar que somos um projeto de sucesso quando ele não for mais necessário, quando as empresas compreenderem que competência não tem nada a ver com identidade, credo, raça”, afirma Maitê Schneider, uma das fundadoras do projeto.

Durante a pandemia da Covid-19, a Transempregos não parou de funcionar. “Eu fiquei morrendo de medo que as primeiras a serem mandadas embora fossem as pessoas trans, mas as empresas entenderam que, se fizessem isso, elas teriam muito mais dificuldade de fazer uma reinserção no mercado de trabalho”, explica Maitê.

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Maitê Schneider é uma das fundadoras da Transempregos






Segundo a presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), Keila Simpson, apesar de haver algumas mudanças positivas no mercado de trabalho, ele continua excludente para as pessoas trans. “Transitando pelo comércio, que é a forma mais comum de emprego por aí, você pode contar nos dedos de uma mão quantas pessoas trans estão empregadas. Você não as vê como vendedoras, supervisoras, gerentes”, afirma.

"Há uma modificação tímida, mas que nós temos que olhar com bons olhos, porque a população trans acaba tendo alguma oportunidade de sair da prostituição, que antes era a única possibilidade para subsistência. Obviamente isso não significa que a prostituição vá acabar. O que precisamos é que ela seja apenas uma alternativa, não compulsória”, diz Keila.

Rose Annie Macfergus, 51, encontrou dificuldades no mercado formal de trabalho. Ela conta que já foi prostituta, marceneira, mecânica, trabalhou na roça, deu aulas de desenho e pintura e tocou em bares. Hoje, faz tatuagens para ganhar dinheiro.

Ela saiu de casa aos 15 anos de idade, após receber ameaças dos familiares. Rose esudou até o quarto ano do ensino fundamental e nunca teve nenhum emprego de carteira assinada e nem tem uma: "Por causa dos constrangimentos."

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Rose Annie Macfergus nunca conseguiu um emprego formal e nem tem carteira de trabalho



Rose vive na cidade de Paranavaí, no interior do Paraná. A cada 15 dias, viaja durante dez horas para Curitiba,  de ônibus, onde faz tratamento hormonal pelo SUS. “Muitas vezes, viajo para outras cidades tentando arrumar clientes, entre outras trans que trabalham nas ruas”, afirma.

“Nunca tive nada sem ter que brigar até sangrar na minha vida. No trabalho, até hoje, não foi diferente. É mais difícil para a gente tentar se manter fora da prostituição”, conta Rose Annie.

Segundo a presidente da ANTRA, as empresas precisam se adequar para que as pessoas trans se sintam bem e respeitadas no trabalho. “Há diversas questões: o banheiro, o uso do nome social, o fardamento permitido para cada gênero...", exemplifica

"Se você perguntar quantas pessoas trans estão empregadas no Brasil, hoje, nem eu e nem ninguém sabe responder porque não se emprega pessoas trans, emprega-se a pessoa do registro civil. Se o registro está retificado ou não, o que vai constar é o que está lá. Não há nenhum marcador identitário”, explica Keila Simpson.

"Gente como a gente"

A eleição de 30 pessoas trans para cargos de vereadores em todo o Brasil aponta para mudanças para essa população. “Só de serem referências já é algo superpositivo. Gente como a gente”, afirma Maitê Schneider, da Transempregos. De acordo com ela, nenhum dos eleitos, que iniciam o mandato no no primeiro dia de 2021, procurou o projeto até o momento.

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Eleita em 2020, Erika Hilton (PSOL), negra e trans, foi a vereadora mais votada da cidade de São Paulo





“Conheço poucos que trabalham [com pessoas trans]. Sei que o escritório do Eduardo Suplicy (PT) tem uma ou duas pessoas trans. Sei que o da Erica Malunguinho (PSOL) também tem uma pessoa trans. Fora isso, não conheço. Espero que essas pessoas novas contratem. Se precisarem da Transemprego, a gente está aqui. Nosso trabalho é totalmente gratuito, tanto para quem contrata quanto para profissionais trans”, diz Maitê.

Eleição não é unanimidade


As pessoas trans eleitas em 2020 vêm enfrentando muita discriminação, de acordo com a presidente da Antra. “Estão atacando a identidade de gênero delas, ameaçando de morte, algumas até pediram segurança para suas vidas. Muitas pessoas utilizam a internet, incentivadas por discursos de ódio, muitas vezes religioso e fundamentalista, para cometer esses crimes. O cenário pode parecer que tem um horizonte promissor, mas ainda tem muitos embaraços. A mudança está só no começo. É o início de uma caminhada e com uma única certeza: é daqui para frente. A gente já veio de trás e não vamos voltar. As margens não nos suportam mais, só voltaremos para elas para buscar aquelas que ainda estão lá.”

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'As margens não nos suportam mais, só voltaremos para elas para buscar aquelas que ainda estão lá'- Keila Simpson, presidente da Antra